Ecos medievais
O mundo anda muito assustado. Como se não bastassem todas as crises, injustiças e corrupções a que nos tinham habituado, os últimos meses desceram a um nível inferior de perversidade, não apenas no terrorismo mas até na saúde. Dizíamos estar pior que nunca, envolvidos em problemas modernos e sofisticados como globalização, falência de bancos ou negociações diplomáticas. Nunca poderíamos imaginar que no século XXI seríamos obrigados a enfrentar horrores medievais.
De repente parece termos regressado séculos atrás, com as crueldades do Estado Islâmico no Iraque e Síria e Boko Haram na Nigéria, ou os estertores do vírus ébola. A violência e miséria em África e Médio Oriente são velhas e persistentes, tendo passado por muitas épocas atrozes. Mas isto é inaudito; decapitações públicas pareciam tão extintas quanto os dinossauros. Aliás, para sublinhar as suas referências, estes movimentos extremistas até fizeram questão de proclamar um califado mundial, unanimemente repudiado por toda a comunidade islâmica. Como se isso não bastasse, o surto de ébola restaurou temores que dizíamos erradicados. Basta ver jornais ou televisões e recuamos aos horrores da peste negra, sentindo o cheiro nauseabundo do século XIV. Será que afinal nada evoluímos com toda a civilização e tecnologia?
A primeira coisa a afirmar, com toda a veemência, é que estas elaboraçães são, não só um erro, mas uma tentação. Qualquer paralelo entre o que hoje vivemos e as misérias antigas é meramente estético, sem validade histórica. Assim que a atenção internacional se dirigiu aos perigos e se começou a lidar com eles, as poucas semelhanças esfumaram-se num ápice. Interessa a muitos esconjurar esses fantasmas, seja para se fazerem interessantes, seja até para obter ganhos financeiros à custa do medo alheio. Pior, os pavores só resultam de sermos homens de pouca fé, capazes de alvoroço ao menor susto. Interpretações catastrofistas, que dão sempre um prazer mórbido e compulsivo, são objectivamente insustentáveis e pecaminosas.
Temos também de dizer, no entanto, que as semelhanças existem, e devem-nos levar a profunda meditação. Dentro de nós mesmos somos iguais às cavernas, quanto mais às aldeias rurais. Os avanços culturais e tecnológicos têm grande valor, mas não mudam o coração. Nos palácios florentinos como nos arranha-céus acontecem baixezas que nem os bárbaos admitiam. Nunca podemos esquecer que o ser humano, cada um de nós, é sempre capaz do pior, e nunca existiu ou existirá civilização que o segure. Só a nossa arrogância nos fez acreditar que estávamos curados das tentações.
No entanto, é preciso dizer ainda que, por mais baixo que desça, o homem pode sempre levantar-se a começar a subir. Mesmo mergulhada na mais profunda escuridão, a humanidade sente dentro de si uma chispa que o pode guiar. Afinal, e apesar do que dizem hoje jornais e televisões, a Idade Média foi uma das mais brilhantes e sofisticadas épocas da humanidade, criadora das universidades e construtora das catedrais.