A opinião de ...

O bode mais infeliz é o expiatório

Nos anos 50, no Liceu Camilo Castelo Branco, em pleno 5º ano do ensino secundário, tocou a campainha para terminar as aulas da manhã. Como era habitual, vinha toda a malta a fugir para ir para casa.
A um dado momento, uma rapariga na corrida, tropeça nas minhas pernas e mergulha no cimento, estatelada e a chorar. Tinha feito um galo na cabeça e algumas escoriações nas mãos. Foi levada dramaticamente para a sala, onde lhe trataram das feridas.
De seguida, na presença da professora da aula mais próxima do acidente armou-se um julgamento e fiquei com as culpas do acontecimento em cima de mim. Fiquei de rastos, nunca tinha sentido tão fortemente a culpa de um crime cometido sem querer. Tinha magoado uma colega e devia pagar na praça pública o meu pecado. Pedi desculpa publicamente e declarei-me imediatamente culpado. Fui em suma um bode expiatório.
Esta ideia de bode expiatório aparece no terceiro livro da Bíblia, o Levítico, capítulo 16. Aí se contam os rituais do grande dia da Expiação. Um deles consistia em trazer à presença do povo um bode, sobre o qual lançavam todos os pecados e indignidades do povo.
O bode era então enxotado para o deserto onde devia morrer de sol e de sede, levando consigo os pecados da comunidade e o povo ficava livre dos seus pecados.
Quando alguma coisa corre mal alguém tem de pagar. Isto na vida política, no futebol e, sobretudo, no dia a dia.
O que é facto é que todos nós, uns mais outros menos, sentimos o peso da culpa de pecados que não cometemos e tudo isto se pode tornar tão doentio que pode descambar em depressão.
O extremo oposto é evidente não ter culpa de nada e as favas serem pagas pelos outros. Chega a ser confrangedor o que vemos na política, na justiça e até no futebol. É difícil encontrar alguém que assuma as responsabilidades políticas, judiciais, desportivas, etc. É a lei do “Bode expiatório a ditar a sua força”.
Para não falar nos casos de Portugal, passo a citar o caso abundantemente claríssimo de Donald Trump, o caricato ex-presidente dos EUA, o homem que conseguiu o invejável record de 30.000 mentiras em quatro anos e nunca teve culpa de nada.
Entre outras coisas que fez Trump: a gestão da pandemia foi sempre culpa dos governadores; mandou invadir a colina do Capitólio, em Washington, um dos mais tristes e significativos crimes da história do seu país.
Quando se é fanático, a evidência da verdade é muito menos importante do que a mentira, porque ela nos dá razão. O que é preciso é acreditar em alguma coisa ou em alguém que nos tire o medo e dê vazão às nossas frustrações.
Então entrega-se a alma a quem tem sempre razão e nunca tem culpa.
Tudo isto começa num lugar chamado família onde não se devia educar para a impunidade. Onde se devia educar para responsabilidade.

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