A opinião de ...

Cajado, pão, ferida e cão…

Sim, na minha frente uma encosta, nada suave, daqui vislumbra-se o cabeço, o topo. Como por arte de mágico, com ajuda da mente e informação, desobstruo o corredor da visão, vejo a subida, e lá está, ventoso, isolado, um lugar de meditação.
O Conde de Vila Flor, Duque da Terceira, nosso herói desde 1833, libertador de Portugal de governo absolutista, plantou-se aqui desde 1877, imponente, majestático, trajado à militar, pose inspiradora, de confiança. Olha-me lá do alto, ele sabe que este chão foi praia, por aqui navegava-se, cheira a faina, a rio e a mar. Conta-se que me encontro no Largo dos Remolares, fazedores de remos, mesmo em frente ao Cais do Sodré, domínios de Duarte Sodré, capitalista.
Estou a passar em frente ao Hotel Bragança, lado esquerdo da Rua do Alecrim e, vejam lá, a descer os degraus de imponente escadaria com belíssimas grades/corrimões em ferro, reconheço Ricardo Reis, ouvi dizer que conhecido de Fernando Pessoa, aquele que lançou slogan para a Coca Cola “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, já provei.
Mais acima, entre a Rua das Flores e esta, a Verdade, da Relíquia, desnudada, entrega-se a um Eça de Queiroz, debruçado e recetivo à volúpia. Por aqui deambulou Victor, de e a caminho da Tragédia.
Na continuidade da “ascensão”, agora num plano chão, de origem humana, pelas terraplanagens dos escombros pós terrifico abalo telúrico, este largo esmaga pela História que transpira das pedras que se debruçam sobre todos que por aqui passam.
Na esquerda, o dono e senhor deste sítio, pala num olho, o que verteu no papel em palavras versadas, os feitos Lusos, do outro, duas Igrejas e um poeta popular, o Chiado. Os imponentes monumentos, Igrejas do Loreto e Encarnação, de 1518 e 1708, construídas após demolições das duas soberbas Torres das Portas de Santa Catarina, da Muralha Fernandina, olham-nos por cima da soberba da ancestralidade.
Neste ponto, no continuar da caminhada, a subir, tenho a noção que me encontro já fora da muralha que protegia a cidade, para lá daquelas Portas, a caminho do topo, de um ermo, nos arrabaldes da cidade de Lisboa.
Misturo-me com a informação, visto a pele dos tempos, os ventos e nevoeiros devem ter vivido aqui e sei que vou na direção das terras de ninguém. Já não me interessa a observação do património que por aqui nasceu, foco-me na orografia, quero ser sugado, recuar, ir ao encontro da Idade Média. Em tempos do Covid19, com o peso dos meus setenta anos, acabo de chegar ao pico, não da virulência mas da colina.
Foi aqui, no pleno desenrolar da Peste Negra, que se enterraram os milhares de mortos da hecatombe. Mais tarde, por cima destas cinzas foi construída uma Ermida em honra de um privilegiado que se despojou, entregou-se de alma e coração aos que tombavam. A Ermida deu lugar a esta imponente Igreja que, entre três no mundo, alberga relíquias deste procurado São Roque, afastador de todas as Pestes, que se isolou para não contagiar, salvo na floresta por um cão vadio que o alimentava com um pão diário.
Para a posteridade, seus símbolos: Cajado, pão, ferida, cão…

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