A opinião de ...

Fragmentos natalícios

Ao contrário dos possuidores de sistemática presença do Natal, a fremente quadra surge fragmentada na minha memória, escorada em acontecimentos intensos que balizam o calendário dos anos. A radiosa exaltação do Menino Deus deitado entre S. José e a Virgem Maria, aquecido pelo bafo do burrinho e da vaquinha, rodeados de musgo, no presépio de Lagarelhos, faísca pormenorizada. O Menino beijado, lambuzado, até tocado por moncos intermitentes, cantado entre espirros e ataques de tosse, raspar de sócas, tocado por mãos grossas e finas, tolhidas e seivosas devido às frieiras, sorria, deixando consolo às crianças friorentas, é forte e fundo fragmento registado para sempre. Outro é o presépio armado no fundo da Sé (velha) de Bragança, a estrela dependurada no alto a guiar os reis Magos, a multidão de figuras à volta, mais calor, Ele vestia melhor, risonho, fagueiro; ressoava a voz de baixo roufenho do Sr. Machado, sacristão de olho vivo parecendo distraído, os cânticos comandados através das intonações vibrantes do ainda padre Luís Ruivo guiavam as afinadas catequistas. Nós acompanhávamos mal engrolando as palavras motivando olhares severos das senhoras frequentadoras da missa das dez. Depois de O beijar corria a fim de gastar duas moedas comprando libras douradas de chocolate vendidas por outro Sr. Machado. Nessa idade, na véspera, vigiado paternalmente assistia à Missa do Galo, no fim uma rabanada e chocolate quente, para meu pesar a realidade já tinha quebrado o fascínio da Sua visita a trazer presentes. O fragmento natalício no decurso da forçada estadia em Cabinda no cumprimento do dever (nenhuma acrimónia nutro relativamente aos fugidos a tal compromisso) legou-me travo amargo; a desgraça da guerra, a opacidade de estratégias enroladas em negócios, ambições, racismo, espúrias superioridades, a trágica vesguice do ditador plasmada na tragédia semeadora de ódios e vinganças. Gastavam-se os dias expressos no cartão – só faltam tantos... –, num desassossego íntimo cuja origem provinha do frustrar dos afectos, da clara inutilidade do gasto de energias. Ali vegetei durante vinte e sete meses num quadrado concentracionário na floresta do Maiombe. Duas consoadas quentes no espírito e no corpo, duas madrugadas de alerta descorada, dois Natais cujo refrão gritado nas escolas «Angola é nossa» persistia, mil fragmentos explosivos de minas e granadas a matarem e mutilarem, os de cá e os de lá. A estourarem sonhos. Para quê?
Bom Natal.

Edição
3504

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